Eu acho que minhas costas doem, mas não tenho certeza. Estou anestesiado, de alguma maneira estúpida que não envolve álcool. Infelizmente, estava sóbrio. Há muito tempo estou sóbrio, cem por cento sóbrio, cem por cento dono de mim, infelizmente, há muito tempo, há muito tempo sem tocar no assunto. A cama eu não arrumo havia quatro dias, e proibi a empregada de fazer isso por mim. A bagunça e o mau cheiro são uma moldura incrível para o algo desarmado que se tornou a minha existência. Naquele instante, estava sozinho na casa vazia. Casa vazia de corredores intermináveis, iluminação precária e livros impacientes. O ventilador faz um barulho indescritivelmente desagradável. E o calor dessa cidade me lembra de que mora o inferno dentro de mim. Eu, faminto, de cueca folgada e rasgada, de barba e de culpa mal feita. Subi após longos minutos de diálogo interno comigo mesmo. Eu posso até ter o inferno dentro de mim, mas o demônio, às vezes, se incomoda com a fome e com a realidade que costura a minha carne todos os dias. Parei pra abrir as janelas da sala e me deparei com um homem, de cabelos escuros, moreno com uma marca horrorosa de regata, aparentemente uns 45 anos, gordo, sem camisa, no apartamento em frente. Me encarou e desviou o olhar. Mero protocolo. Fiz o mesmo. Parei meus olhos no fio de céu que estava ao lado dele e, pela primeira vez desde que estou sóbrio, me senti triste. Não havia motivo, mas havia um fio de céu, um inferno, uma vida, um cara desconhecido e muita, muita fome. Ele parou de desviar a atenção e me olhou. Nos olhamos. Tentei ver um pouco do apartamento dele, mas estava tudo escuro. Só consegui identificar um sofá e um abajur. Talvez, tivesse uma televisão um pouco mais ao lado, mas não tenho certeza, poderia ser uma estante também. Senti que ele sabia, e isso me incomodou de uma forma que quase estive feliz por uns nanosegundos. Senti que ele sabia que não arrumo a minha cama há quatro dias, ele sabia da minha forma errada e transgressora de encarar o mundo, ele sabia da minha mania de escrever sobre solidão após transar (ou quase isso) com alguém, ele sabia, inclusive, do meu fracasso em ser um escritor imbecil, eu era só um imbecil sem talento algum, exceto para quase sempre se dar bem consigo mesmo, ele sabia das minhas costas marcadas por unhas e espinhas e sabia que as cicatrizes eram a coisa mais parecida com amor que eu obtive durante todo esse tempo. Ele sabia que a vida pra mim era coisa boba demais, que o tempo, o tempo passa, eu fico, as pessoas somem, é assim. Ele sabia dos aniversários em que me odiei e odiei cada centímetro do meu corpo, esse corpo tão pouco fictício e cheirando a vodca, esse corpo tão pouco comercial e tão pouco higiênico, esse corpo morada de infernos, que sua mais que um trabalhador braçal e nunca fez porcaria alguma além de levantar uns pesinhos na academia e na alma. Ele sabia dos assaltos que aconteciam diariamente naquela rua, e da minha incapacidade de gritar, ou até de falar, ele sabia dos velhos porcos que morriam em asilos esquecido por gente como eu, jovem, bonita, saudável, infeliz, ele sabia da minha necessidade de sangrar, rir, beber, comer, pulsar, gozar, ele sabia dessa necessidade pra sempre não suprida, pra sempre real e palpável. Ele sabia do meu inferno, das minhas pupilas dilatadas por nicotina imaginária, do meu falso sentimento de desapego, ele sabia da minha playlist recheada de músicas eletrônicas numa tentativa desesperada de ser só batida alegre também. Ele sabia da minha falta de coragem em me matar, mas acho que nesse ponto do ser humano é igual, ele deve saber também, nesse ponto. Ele continua me encarando. Me sinto quase abraçado diante da sua cara de desapontamento impresso como uma tatuagem. Imagino com o quê ele está desapontado. Acho que consigo mesmo. Eu entendo, eu entenderei daqui a alguns anos, quando eu tiver quarenta e cinco anos e morar num apartamento infestado de traumas e fobias. Ele tem mulher? Ex-mulher, quem sabe? Tem filhos? Ex-filhos, quem sabe? Filhos não legítimos? Cachorros? Será que ele já contratou garotas de programa? Ele já pagou cinquenta reais numa pizza? Já esqueceu alguém com um porre? Já esqueceu de si? Ele tem algum tipo de sonho frustrado? Se eu fosse ele, se ele fosse eu, moraríamos em algum lugar afastado, bem isolado, isolado das pessoas que isolo agora, quem sabe numa terra nova, onde só eu e ele saberíamos onde fica, numa espécie de refúgio egoísta, onde eu precisasse ficar sóbrio porque eu abriria a janela e daria de cara com o abismo, e se eu estivesse bêbado, eu saltaria, finalmente voando, livre, finalmente. Eu daria de cara com o abismo, e não com ele. Tiro meus olhos dele e encaro a rua. O dia está mais cinza do que nunca e quase me sinto feliz. Quase me sinto com quarenta e cinco anos, e idiotamente eu acabo de dar um sorriso ao imaginar que toda essa droga já passou, eu já vivi, já era, tenho quarenta e cinco anos e gosto de usar regatas sem passar protetor solar. Ele sorri de volta. Acho que fazia tempo que ele não reparava em outro ser humano, de verdade. Eu também. Coçou a barriga enorme e fechou a cortina. Talvez ele estivesse vendo só um cara do outro lado da rua. No fim das contas, é só isso mesmo.

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