enfarrafamentos, caixões e ironias

Preso no trânsito mais uma vez. Asfalto, carros, calor e tempo perdido são, atualmente, meus maiores genéricos da tristeza. São aproximadamente 10h30 da manhã, estou voltando da faculdade feliz após conseguir terminar uma prova mais cedo e evitar quilômetros de congestionamento. As pequenas alegrias medíocres que a vida oferece, enfim. Ainda um pouco longe de casa, um sinal. O carro da minha frente é de uma funerária, o vidro de trás não tem fumê. Dava pra ver um caixão dentro. Era pequeno, de madeira escura, preso bem firme com faixas pretas, como se o morto fosse fugir pra algum canto. Ali estava um cadáver encaixotado bem na minha frente. Desconhecido. Incomodamente desconhecido. Mas eu pensei na família que estava chorando a morte dele, enquanto o corpo estava naquele camburão exposto como um troféu. Teria ele família, inclusive? Amigos, pais, filhos, esposa, esposo, um cachorro que vai esperar por ele até quando conseguir? Teria cabelos compridos, curtos, usaria óculos, aparelho dentário? Seria rico ou pobre? Feliz? Morreu de quê? Era velho, novo? Foi infarto? Câncer? Dava pra perceber que era um sujeito magro pelo tamanho do caixão, mas era só. Uma exposição. Uma vitrine mórbida. Um cadáver exposto ás 10h30 da manhã, enquanto o calor era insuportável do lado de cá, no mundo dos vivos. O carro da funerária continuou na minha frente até eu chegar em casa. Tive a sensação de que era a morte me guiando, ironicamente, para que eu chegasse a qualquer lugar são e salvo. Aquele caixão tava me dando um “oi, cara”. Senti uma afeição por ele e uma vontade de comparecer ao enterro. Eu sempre gostei de enterros. Eu e o corpo éramos amigos agora. Construí toda uma vida pra ele, afinal de contas, eu e ele temos todo o tempo do mundo para se perder. Eu e ele temos mais coisas em comum do que imaginamos. Eu e o cadáver. Ambos presos no trânsito, às 10h30 da manhã. Eu feliz após terminar a prova da faculdade, ele talvez feliz por não precisar mais estudar pra nada. Eu, completamente entupido de poesia engasgada, e ele também. Uma poesia encaixotada e devidamente dissecada em cima de uma mesa fria e metálica. Cortaram o meu amigo da cabeça aos pés, não acharam vida, agora ele está aí, exposto, numa vitrine, mas escondido, para que a não existência dele não incomodasse as outras pessoas. Amarrado com faixas pretas para que ele, de maneira nenhuma, tentasse voltar. Penso nos amores que deixou de aproveitar, e penso nos amores que aproveitou, e nunca deram certo, penso nos hamburgueres que ele vai deixar de comer, penso nos risos que ele não dará e, por um minuto, fico triste por ele. Sinto luto. Luto por um desconhecido tão íntimo. Somos da mesma carne, do mesmo sangue, da mesma dor. Daqui a alguns anos, eu também estarei dissecado, o legista não encontrará nada além de órgãos negros e inchados, assim como os meus olhos incharam de tristeza tantas vezes e não importará mais, assim como não importa agora. Eu e o cadáver temos mais coisas em comum do que ele supõe. Eu sou ele no futuro, ele sou eu agora. Um monte de matéria orgânica, um amontoado de carbono e água, derretendo no calor da cidade, às 10h30 da manhã. Quando eu tinha doze anos, eu matava aula pra ir até o cemitério. Sim, um prazer mórbido, mas eu era uma criança que não enterrou a mãe, eu precisava enterrar tantos sentimentos dentro de mim que preferi enterrar desconhecidos. Meus melhores textos saíram de túmulos, literalmente. A vida, amigos, é isso: um combustível doce aprisionado num corpo cuidadosamente adequado a ele. A máquina perfeita: artérias, tecidos, glândulas, cérebro, coração e dor. Os doutores abrem o corpo, tentando encontrá-la, e ela desaparece antes mesmo de ser liberta. A vida não suporta a liberdade. E o caixão está amarrado com faixas pretas. Eu queria dizer ao meu amigo que mesmo depois da morte a gente não se livra dos engarrafamentos.

Publicado em Sem categoria | Deixe um comentário

Eu acho que minhas costas doem, mas não tenho certeza. Estou anestesiado, de alguma maneira estúpida que não envolve álcool. Infelizmente, estava sóbrio. Há muito tempo estou sóbrio, cem por cento sóbrio, cem por cento dono de mim, infelizmente, há muito tempo, há muito tempo sem tocar no assunto. A cama eu não arrumo havia quatro dias, e proibi a empregada de fazer isso por mim. A bagunça e o mau cheiro são uma moldura incrível para o algo desarmado que se tornou a minha existência. Naquele instante, estava sozinho na casa vazia. Casa vazia de corredores intermináveis, iluminação precária e livros impacientes. O ventilador faz um barulho indescritivelmente desagradável. E o calor dessa cidade me lembra de que mora o inferno dentro de mim. Eu, faminto, de cueca folgada e rasgada, de barba e de culpa mal feita. Subi após longos minutos de diálogo interno comigo mesmo. Eu posso até ter o inferno dentro de mim, mas o demônio, às vezes, se incomoda com a fome e com a realidade que costura a minha carne todos os dias. Parei pra abrir as janelas da sala e me deparei com um homem, de cabelos escuros, moreno com uma marca horrorosa de regata, aparentemente uns 45 anos, gordo, sem camisa, no apartamento em frente. Me encarou e desviou o olhar. Mero protocolo. Fiz o mesmo. Parei meus olhos no fio de céu que estava ao lado dele e, pela primeira vez desde que estou sóbrio, me senti triste. Não havia motivo, mas havia um fio de céu, um inferno, uma vida, um cara desconhecido e muita, muita fome. Ele parou de desviar a atenção e me olhou. Nos olhamos. Tentei ver um pouco do apartamento dele, mas estava tudo escuro. Só consegui identificar um sofá e um abajur. Talvez, tivesse uma televisão um pouco mais ao lado, mas não tenho certeza, poderia ser uma estante também. Senti que ele sabia, e isso me incomodou de uma forma que quase estive feliz por uns nanosegundos. Senti que ele sabia que não arrumo a minha cama há quatro dias, ele sabia da minha forma errada e transgressora de encarar o mundo, ele sabia da minha mania de escrever sobre solidão após transar (ou quase isso) com alguém, ele sabia, inclusive, do meu fracasso em ser um escritor imbecil, eu era só um imbecil sem talento algum, exceto para quase sempre se dar bem consigo mesmo, ele sabia das minhas costas marcadas por unhas e espinhas e sabia que as cicatrizes eram a coisa mais parecida com amor que eu obtive durante todo esse tempo. Ele sabia que a vida pra mim era coisa boba demais, que o tempo, o tempo passa, eu fico, as pessoas somem, é assim. Ele sabia dos aniversários em que me odiei e odiei cada centímetro do meu corpo, esse corpo tão pouco fictício e cheirando a vodca, esse corpo tão pouco comercial e tão pouco higiênico, esse corpo morada de infernos, que sua mais que um trabalhador braçal e nunca fez porcaria alguma além de levantar uns pesinhos na academia e na alma. Ele sabia dos assaltos que aconteciam diariamente naquela rua, e da minha incapacidade de gritar, ou até de falar, ele sabia dos velhos porcos que morriam em asilos esquecido por gente como eu, jovem, bonita, saudável, infeliz, ele sabia da minha necessidade de sangrar, rir, beber, comer, pulsar, gozar, ele sabia dessa necessidade pra sempre não suprida, pra sempre real e palpável. Ele sabia do meu inferno, das minhas pupilas dilatadas por nicotina imaginária, do meu falso sentimento de desapego, ele sabia da minha playlist recheada de músicas eletrônicas numa tentativa desesperada de ser só batida alegre também. Ele sabia da minha falta de coragem em me matar, mas acho que nesse ponto do ser humano é igual, ele deve saber também, nesse ponto. Ele continua me encarando. Me sinto quase abraçado diante da sua cara de desapontamento impresso como uma tatuagem. Imagino com o quê ele está desapontado. Acho que consigo mesmo. Eu entendo, eu entenderei daqui a alguns anos, quando eu tiver quarenta e cinco anos e morar num apartamento infestado de traumas e fobias. Ele tem mulher? Ex-mulher, quem sabe? Tem filhos? Ex-filhos, quem sabe? Filhos não legítimos? Cachorros? Será que ele já contratou garotas de programa? Ele já pagou cinquenta reais numa pizza? Já esqueceu alguém com um porre? Já esqueceu de si? Ele tem algum tipo de sonho frustrado? Se eu fosse ele, se ele fosse eu, moraríamos em algum lugar afastado, bem isolado, isolado das pessoas que isolo agora, quem sabe numa terra nova, onde só eu e ele saberíamos onde fica, numa espécie de refúgio egoísta, onde eu precisasse ficar sóbrio porque eu abriria a janela e daria de cara com o abismo, e se eu estivesse bêbado, eu saltaria, finalmente voando, livre, finalmente. Eu daria de cara com o abismo, e não com ele. Tiro meus olhos dele e encaro a rua. O dia está mais cinza do que nunca e quase me sinto feliz. Quase me sinto com quarenta e cinco anos, e idiotamente eu acabo de dar um sorriso ao imaginar que toda essa droga já passou, eu já vivi, já era, tenho quarenta e cinco anos e gosto de usar regatas sem passar protetor solar. Ele sorri de volta. Acho que fazia tempo que ele não reparava em outro ser humano, de verdade. Eu também. Coçou a barriga enorme e fechou a cortina. Talvez ele estivesse vendo só um cara do outro lado da rua. No fim das contas, é só isso mesmo.

Publicado em Sem categoria | Deixe um comentário

São 5 AM. Meu hálito ainda está com cheiro de álcool, forte, limpo, seco, e eu não lembro de ter bebido tanto. Deixei você deitada no meu peito, ainda ofegante, me fazendo carinho no cabelo enquanto meu corpo inteiro ainda tremia. Estamos sujos. Beijei você como quem beija a pele de um recém abortado, cuidando e preservando um amor que nunca aconteceu e nunca vai acontecer porque somos isso: dois corpos naturais que se completam. Amor em nada tem a ver com completude. Jamais sobraremos. Você poda minhas falhas com seu toque malicioso, e o jeito como você me segura e me sustenta dentro de você quase rasgando a minha pele. O jeito como você não se importa com a minha queda, com as minhas artificialidades que começam a surgir dentro de um corpo maduro e envelhecido pelas maneiras invisíveis e politicamente corretas que uso pra me matar.  Você não se importa quando levanto da cama e sento no computador com uma dor insuportável no peito que a muito tempo deixou de ser tesão e suor. Só passa quando eu escrevo textos e mais textos sobre essa angústia que você não repara e também não repara… Talvez você ainda não saiba que o que levo dentro de mim é um pouco mais pesado do que o meu corpo jogado sob o seu. Eu não desejo as suas curvas e os seus poros molhados, eu não desejo as suas roupas espalhadas no chão e os fios de sangue que ficam nas minhas costas, não desejo seus sussurros e as nossas marcas roxas. A minha alma precisa de um pouco de loucura que não encontro em ninguém. O mínimo, o suficiente, aquilo que transborda na minha cama. Somos isso, apenas. Dois corpos naturais que se completam. Não há loucura alguma em ser humano. Não há loucura alguma no prazer que você me dá ao dormir ainda suada, enrolada nos meus lençóis. Também não há loucura nenhuma no vazio incrível e invencível que permanece após meus olhos voltarem pras órbitas… Mas há um pouco de loucura no choro que eu derramo quando você se vai e se esvai. Eu sei que você está indo embora, e eu choro sem saber o motivo. O motivo deveria ser você, mas não é. O não saber é ainda pior, acredite. Você poda todas as minhas falhas enquanto eu me submeto ao que você tem em si e não me é suficiente. Eu nunca estive tão próximo de mim assim, tão próximo de tanta coisa podre que amontei nesses anos de solidão plenamente suportável. Você se vira e adormece com as costas voltadas pra mim. Suas costas são lindas e insuficientes. Adormeci acreditando que é isso. É só e deliciosamente isso.

Publicado em Sem categoria | Deixe um comentário

Escuto, em dias de chuva, as vidas amargas, iludidas, gritando como almas condenadas eternamente ao inferno ou ao desprezo. Cada berro e cada gota de sangue infantil que se esvai, abafados por um tilintar agonizante que o céu faz descer, abafados pelo cheiro gostoso de terra molhada (que na verdade não passa do cheiro de bactérias mortas), eu escuto, eu vejo, eu sinto. Eu sinto a verdade e a agonia que aparece no céu cinzento, a verdade tão minha, o segredo tão meu, exposto como uma pintura esquizofrênica. Uma pintura esquizofrênica que é cômica e poética feito o amor de um desiludido. Eu vejo, em dias de chuva, lágrimas enormes que aparecem nas estatísticas em forma de catástrofe ou sonho. Eu vejo, em dias de chuva, as inúmeras outras lágrimas depressivas que não aparecem sequer no canto do olho. Lágrimas abafadas de vidas amargas e iludidas. Pelo vidro molhado escorre a invisibilidade e a pequenez dos humanos diante do choro de algo ou alguém que guardou dentro do peito toda a mágoa do mundo. O trânsito caótico, os guarda-chuvas coloridos que são como estrelas inúteis numa noite sem lua, a música triste, a xícara de chocolate quente, a terrível sonolência e as poças d’água refletindo uma imensidão moribunda. Eu imagino, em dias de chuva, que o infinito é algo maquiado e que todo o líquido transparente que cai ninguém sabe de onde é, na realidade, as cascas dos amores mortos que precisam ser tirados dali pra que outros possam nascer, crescer e morrer. Amores fracassados que caem nas nossas cabeças como uma vingança natural, atrasando nossos compromissos, cancelando nossos voos e enrolando cordas nos nossos pescoços, porque sim, não temos culpa de todo o amor do mundo, mas temos culpa por amar e a solidão é uma espécie de amor autossuficiente, igualmente fracassado. Igualmente fracassado, eu sei. Em dias de chuva, o universo descansa e se alivia, de todos os pesos que a humanidade o faz carregar, de toda a exigência e de toda a poesia, e chora, chora, chora, abafando os pedidos de socorro das tais vidas amargas e desiludidas, das tais almas que gritam pra se livrarem do inferno ou do desprezo.
Eu penso, finalmente, em dias de chuva, que também vai chegar a minha hora de chover.

Publicado em Sem categoria | 1 Comentário

O céu, ele lembra nós dois. Vazios.
Um vazio incalculável. As decadências estrelares são as nossas falhas.
Falhas em nos manter vazios diante da buraco negro que habita a insignificante parcela de vida azul.
Galáxias inteiras cabem dentro do nada.
É o amor.
Eu lembro quando me contaram sobre tristeza pela primeira vez.
Lembrei do céu e do vazio.
E foi como ver os seus olhos se pondo pela primeira vez.

(Cinzentos)

Publicado em Sem categoria | Deixe um comentário

Cada tristeza é um aniversário.

Trinta e poucos anos. A melhor idade tanto para subir na vida como para cometer um suicídio. Aos trinta e poucos anos você atinge um estágio sublime, em que fica pendurado no céu da vida por finas linhas de esperança e rancor. Acredito eu que, se os anjos existirem, Eles também possuem trinta e poucos anos. Nada de crianças ou adolescentes com nomes cafonas andando pelados pelas nuvens. Presos num estado letárgico em que o futuro é só saudade. Saudade do futuro que tínhamos quando a única vontade era crescer, crescer, crescer, e o objetivo de todo mundo quando se é criança é crescer até alcançar as nuvens. E quando a gente cresce até alcançar as nuvens, ninguém mais pode nos ver, nos ferir ou nos puxar pro abismo ou pra goela de baleias. Ninguém mais pode dizer que não somos capazes ou que somos pequenos demais para sermos amados porque querem nos amar e não porque precisam nos amar. Existe uma grande diferença, uma diferença que nos assusta, e ela mora dentro de todos os armários do mundo. Aos trinta e poucos anos, você não pode mais dormir com a sua mãe, não deve mais (aos cinco você pode correr pro quarto dela quando tem um pesadelo. Aos trinta, pode, mas não deve, ainda que o pesadelo continue o mesmo, tanto aos cinco quanto aos trinta, e a mãe também continue a mesma, ou quase), e a sensação de prazer, de vergonha e o raciocínio lógico faz você adormecer mais rápido. Mas os monstros, as diferenças e as dúvidas continuam lá. Você é que se tornou um deles. O monstro embaixo da cama de todo mundo é aquela coisa que quer que você continue sendo visto enquanto faz xixi na cama, quando na verdade você quer crescer, crescer, crescer, até atingir as nuvens, e nunca mais ser visto. Quando você ainda é pequeno e tem um futuro inteiro pela frente, um futuro que não é só saudade, você tem que ser amado. É a obrigação dos seus pais, seus responsáveis, seus tutores, etc. Mas uma criança consegue sobreviver mesmo sem ser amada, verdadeiramente amada. Basta dar comida, educação e dinheiro, essas coisas básicas que nunca tem a ver com amor. Ela também pode sobreviver na rua, é claro, desde que tenha comida e muita raiva no peito. Mas quando você cresce, cresce, cresce, mas não cresce o suficiente, cresce só até chegar aos trinta e poucos anos, se você não for amado, se ninguém mais possui a obrigação de te amar, tudo bem. Se você tiver comida e dinheiro, a vida segue, o mundo te aceita. Aos trinta e poucos anos você sobrevive, chorando baixo numa fábrica qualquer, questionando as próprias lágrimas, com medo de que seu chefe descubra, mesmo sabendo que ele também não se importa, desde que você produza, porque se você produzir, ele te dá dinheiro, e você pode comprar sua própria comida. Assim, ele vai cumprir a obrigação de chefe dele também. E por mais triste que seja, ele também cumprirá a obrigação de fazer com que você se ame. Você se ama ao ganhar dinheiro e se alimentar, mas não percebe isso, porque o amor próprio é uma necessidade, e o fato de respirar também, mas você não percebe. Você se ama ao se manter vivo e visto até os trinta e poucos anos, você se ama sozinho, pendurado por finas linhas de esperança e rancor, observado por todo mundo e ao mesmo tempo enxergado por ninguém, sentindo um medo inexplicável do futuro, que é só saudade, saudade do tempo em que, pensávamos e sabíamos, a vida se encerrava aos trinta e poucos anos.

Publicado em Sem categoria | 1 Comentário

na ausência de fé
deus é literatura

Publicado em Sem categoria | Marcado com | Deixe um comentário

Maria, 48 anos, secretária, mineira.

Divorciou-se há três anos e a única filha que tiveram foi fazer intercâmbio em Paris.Tudo o que sobrou foi um apartamento no subúrbio, três vasos de planta e um cocker spaniel velho, de nome Spencer que já estava à beira da morte, quase cego. No armário ainda tinham algumas roupas de Paulo, o ex-marido, mas ela nunca teve coragem de jogar fora.
Saiu pra passear com o cachorro às 9h30.
E odiava aquele cachorro. Tinha sido presente da filha e passou a vida tentando transar com pernas tanto de pessoas quanto de sofás. Maria falou n vezes pro marido castrar Spencer, mas ele ficou com pena. Quando foi embora, Paulo queria levá-lo consigo, mas ele já estava levando embora a sua juventude e os anos que dedicou pra um casamento fadado ao insucesso, não era justo que levasse o maldito cachorro também. Ficou com Spencer apenas por compreensão: ambos estavam na pior fase de suas vidas.
Chegou em casa às 11h. Foi pegar a correspondência e no meio das contas, propagandas e um cartão-postal enviado pela filha, Maria achou um convite de casamento. Era o casamento de Paula e Sabrina, a mulher dezessete anos mais nova que ela só teve a oportunidade de conhecer o seu belo traseiro nu, ali mesmo no seu quarto.
Deixou o convite em cima da mesa, sentou no sofá e acendeu um cigarro. Fazia 20 anos que não fumava. A última vez que acendeu o cigarro foi ao terminar também sua última transa de verdade com Paulo. Nenhuma declaração de amor, mas não importava. Alguns anos mais tarde, na última vez, Paulo só teve o trabalho de afastar sua calcinha. Virou e dormiu roncando alto.
Agora ele estava casando com a amante dezessete anos mais nova chamada Sabrina. E ela, a ex-esposa, jogada num cubículo, cuidando de um cocker spaniel velho e cego, sem nunca ter atraído nenhum outro homem. Sentiu vontade de rir.
Spencer se aproximou e começou a lamber os seios de Maria. Ela deixou. Abaixou o sutiã suavemente e deixou. Depois de dois minutos, empurrou o cachorro, apagou o cigarro e foi pro banheiro se limpar. Pensou em tomar outro banho, mas não era pra tanto.
Tirou a calça, foi pro quarto e trancou a porta. No espelho de corpo inteiro, olhou suas coxas grossas e moles, sua barriga branca demais, sua cicatriz da cesariana da filha, suas celulites, suas estrias, sua boca fina, seus olhos fundos, e entendeu Paulo. Não conseguiu sentir raiva dele por um segundo sequer. Entendeu Paulo da mesma maneira que se entendia agora, e entendia Sabrina, e entendia Spencer.
Pegou sua bolsa de maquiagem, passou batom vermelho, pó, rímel e soltou os cabelos cuja raiz não retocava fazia três meses. Por fim, deitou-se na cama. Ficou esticada lá por cerca de meia hora. As lágrimas escorriam do seu rosto mal arrumado. Segurou com força um de seus seios e depois de leve. Passou os dedos entre eles, desceu até o umbigo e fez movimentos circulares. Quando desceu um pouco mais, as lágrimas escorriam mais e mais forte. O telefone tocou. Era o chefe. Ela ignorou e continuou a descer a mão até que encontrou o que procurava.
Quando terminou, a calcinha de Maria estava nos pés da cama. Seus dedos estavam sujos e mal cheirosos, estava molhada de suor, a cama desfeita e os cabelos desgrenhados. O seu corpo ainda tinha alguns espasmos e Spencer latia com fome do lado de fora.
Acendeu um cigarro e teve certeza: estava amando novamente.

Publicado em Sem categoria | 1 Comentário

Se ontem amei alguém na vida, hoje tirei do túmulo uma espécie de amor.
Se ontem amei alguém com cabelos e cheiros, unhas e sexo, lábios e beijos, olhos e sonhos, hoje descobri que o amor é feio e fede como um cadáver.
Não há ainda nesse mundo necrofilia que faça o que amei voltar a ser o que amo.
E por mais que eu chore, por mais eu peça, por mais que eu lamente por alguma coisa parecida com saudade, por mais que eu saiba que amei, sim, alguém na vida, eu jamais, de maneira alguma, diria que ainda amo alguma coisa na vida.
O amor sugere que eu ame
suas vísceras,
seus exames de fezes,
suas menstruações,
seu café açucarado,
suas doenças,
suas crises,
seus ossos,
seus fracassos,
seus miolos estourados,
seus bebês que jamais nasceram e apodrecem no seu útero,
seus membros engordurados,
suas dores de cabeça,
seu passado,
sua morte.
O amor sugere que eu ame tudo isso sozinho.
Fica em mim a vontade de invadir o cemitério, roubar o seu corpo e colocá-lo pra dormir no meu colo, enquanto seus olhos que já foram poesia reconquistam a vida através dos vermes que saem deles.
Hoje eu não amo, mas amei, sei que amei.
Mas se o amor é isso, a vida não é, a vida é crime, é pecado e, mais do que tudo, é sanidade.
O amor não espera nem Deus e nem justiça, e muito menos eu.
Se ontem amei alguém na vida,
hoje eu lavo as minhas mãos com sabonete antisséptico e álcool em gel.

Publicado em Sem categoria | 3 Comentários